Opinião
Descolonizar geral para esperar pela metamodernidade
O colonialismo mental é um fenômeno permanente, diverso e complexo.
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Edson MirandaMuito se fala hoje em dia da necessidade de descolonizar nossas cabeças. Essa é uma postura importante e até vital para todos nós, apesar de compreender que, dada a natureza humana, nunca será possível deixar totalmente de pensar com as ideias dos outros, conseguir pensar com as próprias ideias. Porém, o mais importante a ser ressaltado aqui é o fato de que não podemos confundir o colonialismo, particularmente das ideias, como um fenômeno que ocorreu apenas no passado. Não, o colonialismo mental é um fenômeno permanente, diverso e complexo.
Não é tão difícil perceber que nos dias atuais existe uma confluência de mentes colonizadas, tanto pelo fenômeno do colonialismo histórico quanto por novos formatos de colonização. Um desses formatos que passei a identificar com muita presença no atual cenário social, político e cultural brasileiro, é o que denomino de “utilitarismo pelego”. Não tem nada a ver com o utilitarismo de Stuart Mill, este afirma que as ações são boas quando tendem a promover a felicidade, e más quando tendem ao contrário. O utilitarismo pelego é desapetrechado desse tipo de preocupação filosófica. É uma continuação mais sofisticada do anterior, aquele criado e mimado pelo getulismo. Este atual, assim como seu irmão siamês getulista, nasce no puro cálculo e o leva para a cova, até o final da existência.
É um fenômeno plural, vai da direita à esquerda e extrapola o espaço apenas do sindicalismo. Como disse, é uma forma de existência, uma filosofia de vida. O malabarismo intelectual, a torção desenfreada de ideias e argumentos são sua base de ação e modelo justificativo. Essa base e modelo são, atualmente, criados e alimentados de cima para baixo; as atuais redes comunicacionais permitem tal façanha. Visa, em muitos casos, apenas interesses particulares, no máximo de grupos segmentados por visões mercadológicas e ideológicas diferentes ou até por nuances dentro de uma mesma ideologia. Isso termina fazendo com que se sobreponha aos interesses gerais e da maioria. Seu lema foi roubado da Filosofia Popular, o tal “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Sua principal característica, no entanto, isso para os mais letrados, é praticar um ativismo e uma vigília constantes, visando, normalmente, rebaixar, pessoalizar ou taxonomizar uma crítica dirigida ao seu objeto de culto: uma ideia ou um sistema ideológico, uma religião, um líder, um regime, um governo etc. Se veem o tempo todo num campo de batalhas, pois é preciso, o tempo todo, defender cada quinhão ameaçado de mudar de mãos.
Assim, defendo que, diferentemente da mera opinião, da pura provocação e da defesa de posições vistas na política como continuação da guerra, na crítica estruturada por argumentos consistentes não cabe nenhuma resposta destemperada, intempestiva. Nenhum rebaixamento desqualificado, nenhuma classificação do tipo construtiva, destrutiva; oportuna, inoportuna; para o bem, para o mal, ou expressões do gênero: “falar é bom, fazer é que é difícil”, crítica do opressor contra o oprimido etc. Cabe apenas outros bons contra-argumentos. A crítica, nesse sentido, tem valor por si só. É como a democracia, na qual, inexoravelmente, habita um valor substantivo, sem o qual, sem essa forma criativa de mediar conflitos, viveríamos o tempo todo guerreando. Essa crítica que pode ser marxista, liberal, conservadora, funcionalista, utilitarista, fenomenológica, hermenêutica… somente deve ser rebatida, questionada ou aperfeiçoada por uma outra crítica de igual valor, fundamentada e produzida por uma forma diferente, porém qualificada, de ver (sensorial) e enxergar (afetivo-cognitiva ) um mesmo problema, fenômeno ou realidade.
Dessa maneira, intensificamos a importância e o aspecto emancipatório da crítica, sua imprescindibilidade para o processo do diálogo, que, consequentemente, leva ao aperfeiçoamento de ideias, convívios e à diversidade harmoniosa da vida. É uma maneira inteligente de conviver, de não encarar de forma negacionista o que as ciências do cérebro, até aqui, já afirmam: “o mundo percebido é influenciado por nossas aspirações e desejos, reconhecidos e inconscientes. Vemos como somos, enxergamos como suportamos”. Para tanto e ainda para nosso maior conforto mental, muitas vezes buscamos cavernas, bolhas, panelinhas, tribos e vieses cognitivos com o intuito de confirmar nossas crenças mais arraigadas e mitigar o sofrimento que seria viver grande parte do tempo com questionamentos a elas. Perdê-las, para muitos, ainda significa a própria morte.
Entretanto, não é essa conduta saudável que hoje presenciamos nos chamados círculos intelectuais da política, do jornalismo e da academia, a princípio os grandes setores responsáveis por uma boa qualificação e condução do debate público. Assistimos atualmente em tais círculos críticas bem fundamentadas serem simplesmente negadas ou rechaçadas como se simplórias opiniões fossem. É como se o clima quente do debate nas redes sociais houvesse infernizado esses outros ambientes. O pior, mesmo nesses setores que em tese estariam mais propensos ao bom diálogo, saímos de um mundo onde era “proibido proibir” para um outro onde quase tudo ficou proibitivo. Um mundo onde principalmente a atividade da crítica se tornou bastante arriscada. Um mundo que comporta, no máximo, apenas duas unanimidades. Ou, como diria Millôr, apenas duas burrices: a farsa do tradicionalismo da direita autoritária e a farsa do progressismo da esquerda também autoritária.
Quando um presidente eleito para o máximo objetivo de pacificar o país afirma num palanque sindical que os 51% dos seus eleitores, por dedução lógica, “saudáveis mentalmente”, ainda precisam derrotar os outros 49% de “malucos” que continuam nas ruas e não votaram nele, é que a situação não anda muito boa ou então está apenas tentando empurrar essas duas unanimidades até o próximo pleito eleitoral.
Toda essa situação esdrúxula que vivemos atualmente, alguns estudos e pesquisas já identificam o seu nascedouro na conduta humana extremamente cética, oriunda da concepção filosófica e da ação política da chamada pós-modernidade. Esta nasceu sob o signo da negação e do rechaço a um conjunto de valores da modernidade, dentre eles o mais caro, a própria ideia de razão e, consequentemente, todo o conhecimento produzido anteriormente tendo como base esse mesmo modelo racional.
Para o nosso provável alívio, nosso aqui é força de expressão: daqui a alguns anos toda essa nossa geração mais ativa na política, certamente, estará morta, os holandeses Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker já falam na possibilidade da chegada de uma nova era da humanidade, a metamodernidade. Para eles, existe atualmente já uma espécie de cansaço com o comportamento pós-moderno, responsável por nos trazer até essa intensa divisão atual, à nova Babel com suas guerras culturais, caos e entropia. Por outro lado, esse cansaço com o mundo instituído a partir da subjetividade pós-moderna, aliado às intuições e novas percepções humanas, decorrentes dos riscos das mudanças climáticas e da pandemia da Covid-19, estaria também nos conduzindo para uma nova era, um novo espírito do tempo, cuja principal característica tende a ser um idealismo pragmático. Por enquanto uma forte intuição, já manifesta nas artes, de que, caso não nos juntemos, corremos o risco de levar toda nossa espécie para o mesmo abismo. Assim, a metamodernidade será esse novo espírito do tempo que aos poucos vai substituindo o anterior, que se mostra, a cada dia, mais decadente e inviável para conduzir uma nova humanidade. Como atualmente tudo está mais acelerado, as conformações humanas nascem e morrem com mais rapidez, espero estar vivo para ver essa metamodernidade.
O maior problema nessa nova situação é como o Brasil, que ainda não vivenciou completamente a modernidade, o Iluminismo e também a pós-modernidade, se situará ou tentará se adaptar ao novo contexto da metamodernidade. Mas, olhando para o passado, acho que o Brasil tirará de letra. Certamente dará o seu jeitinho. Ê, Brasil doido (rsrsrs)!!!
Voltando ao peleguismo atual reinante, pelo menos no Brasil, na vida e na experiência política, já vi muitos pelegos que serviam de amaciante a determinadas críticas que pudessem atingir os seus objetos de culto, virarem uma fonte de vitupérios e irracionalidades na medida em que a adversidade e o sofrimento, que antes atingiam apenas indivíduos sem cara, CPF, endereço, dispersos na imensa massa de miseráveis: uns trabalhadores, uns pobres, uns quilombolas, passaram também a ganhar rostos e identidades: eu, minha família, meus amigos. Quando o infortúnio passou a bater na sua porta, tudo mudou de lugar: o pelego que antes servia de anteparo passou a ser potencializador do impacto. Como se diz no popular, passou a gemer. Nesse sentido, o bolsonarismo e o lulismo têm sido boas escolas e, quanto mais tempo sobreviverem, mais desafetos desse tipo produzirão, mais gemidos de dor provocarão, pois pensam a política como continuação da guerra e, ao mesmo tempo, são incapazes de enfrentar de maneira mais crítica e racional nossos maiores desafios atuais. Nesse sentido, são ambos adeptos do mais torpe experimentalismo político e cultural.
Do ponto de vista mais teórico, intelectual, um outro aspecto importante desse utilitarismo pelego é o abandono do fato em prol da vertigem interpretativa, uma outra característica muito forte no pós-modernismo e sinal inequívoco de que direita e esquerda foram igualmente contaminadas apenas pelo que a pós-modernidade possui do “efeito moda”, passando ao largo de seus aspectos mais importantes. Dessa forma, a mentalidade pós-moderna, tanto nas hostes da esquerda quanto nas da direita, nesta última até mais — mas é só uma questão de tempo para parearem —, tem sido pródiga em performances vertiginosas e imaginação: perdemos de sete a um para nossa mais exuberante ficção.
As Fábulas de Esopo, o Senhor dos Anéis, As Crônicas de Nárnia e até Harry Potter ficam no chulé da atual imaginação política. No passado, só para termos uma ideia, principalmente no período stalinista, talvez o mais irracional da experiência soviética, proliferou por parte de muitos intelectuais marxistas de quatro costados o uso da ideia de “astúcia da razão” como justificativa intelectual aos crimes de Stalin e aos retrocessos emancipatórios na revolução e na sociedade soviética. O mais engraçado é que a “astúcia da razão” é uma categoria eminentemente hegueliana e que servia de muleta para justificar o sistema de pensamento de Hegel, sua ideia de história, progresso lineares e do Espírito Absoluto. No regime soviético era usada para algo do tipo: se passamos por todo esse retrocesso e violência no presente é porque a própria razão nos reserva algo redentor no futuro. Não foi à toa que a belíssima literatura russa e soviética conseguiu expressar com bastante maestria muito da interminável miséria e degradação humana. Ouso afirmar que trata-se do mesmo tipo de erro que muitos, hoje em dia, cometem ao fazer leituras positivas e tentativas revisionistas da própria colonização e até da escravidão. A base desse tipo de raciocínio pode muito bem se encaixar na “astúcia da razão”; convenhamos, uma verdadeira aberração cognitiva e intelectual. No caso soviético, a história mostrou que foi mais importante o crescente aumento de críticos do que a imensa legião de puxa-sacos que se formou em torno do regime totalitário.
Atualmente, o mundo passa novamente por um aumento exponencial dos puxa-sacos e um decréscimo arriscado do pensamento crítico. Num cenário como esse, a importância da crítica passar a ser vital.
Aqui com meus botões, depois de tanta experiência histórica, é inacreditável ver o mundo atual e o inferno recheado, como estão, de tantos puxa-sacos e poucos críticos, em todos os quadrantes ideológicos e políticos.
Ouso dizer, aliás, não é nenhuma novidade, muitos já disseram. Não existe nenhuma saída consequente para um conjunto de ideias que visem pensar sobre nossas sociedades e sobre os indivíduos, alheio à crítica e à crítica da crítica. É esse um processo hermenêutico vigoroso e salutar, no qual tudo pode e deve ser exposto à luz curativa do dia.
Que venha então essa tal metamodernidade, esse novo espírito do tempo, zeitgest, mas que saibamos, antes, cozinhá-la no tempero da crítica, da harmonia, do bom convívio entre os diferentes e, acima de tudo, da justiça, igualdade, liberdade, fraternidade, alegria e amor.
Porém, não nos esqueçamos que o velho mundo ainda agoniza, e esse é um momento que devemos enxergar com preocupação, pois são nesses estertores que as formas fantasmagóricas e os monstros do velho mundo buscam se perpetuar com o máximo de violência. É hora de deixar que decantem, afundem nas mais distantes profundezas dos mares e oceanos. Só assim teremos alguma garantia de que o novo chegará sem os vícios e as mazelas do passado. Tudo isso depende de cada um de nós. Da nossa coragem e predisposição para a crítica.
Nossos netos, bisnetos e tataranetos agradecerão e muito essa nossa pequena e virtuosa atitude para preparar um mundo melhor para eles.
Abraços.
Edson Miranda Borges é jornalista e mestre em Comunicação e Culturas Contemporâneas.
*Este espaço é plural e tem o objetivo de garantir a difusão de ideias e pensamentos. Os artigos publicados neste ambiente buscam fomentar a liberdade de expressão e livre manifestação do autor(a), no entanto, não necessariamente representam a opinião do Destaque1.
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