Enegrecer
Há mais de 30 anos à frente do ‘Espermacete’, Mestra Nildes mantém viva cultura ancestral do samba de roda
Desde 1990, em lavagens e cortejos tradicionais de Camaçari, o Espermacete encanta o público com alegria e ancestralidade.
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Elaine SanoliOs troféus e medalhas cuidadosamente enfileirados nas prateleiras da pequena garagem da Mestra Nildes Bomfim, 62 anos, contam histórias. Uma história passada de geração para geração da Bahia, de Mata de São João, terra natal da mestra, de Barra de Pojuca, onde vive há mais de 45 anos, que é assistida anos a fio pelas ruas de Camaçari em todas as festas populares locais. Desde 1990, onde quer que se olhe, em lavagens e cortejos tradicionais camaçarienses, a Companhia de Apoio Social e Cultural Espermacete encanta o público com alegria, samba de roda e ancestralidade.
Mas a chama que deu vida ao grupo foi acesa ainda no início do século passado. Nildes conta que a ideia de criar um grupo de samba de roda nasceu com seu avô, por volta de 1900. “Tudo aconteceu com o meu avô, ele foi fundador do grupo e contava a história de um naufrágio que aconteceu em costa brasileira. Nesse navio, entre as especiarias que vinham, estava também o espermacete”, conta, ao explicar o motivo do nome. “É uma substância extraída do cérebro, principalmente, de baleias como a cachalote, que se fabricava velas, cosméticos, verniz… também servia até pra acender candeeiros e lampiões, entre outras coisas”.
Enquanto as mulheres trançavam em palha e piaçava objetos e acessórios, nasciam os primeiros cantos e danças. Elas saíam pelas ruas com suas cantigas coreografadas na ‘Folia de Reis’, também conhecida como ‘Reisado’, celebração tradicional de Barra de Pojuca e que faz alusão à visita e entrega dos presentes dos Três Reis Magos ao Menino Jesus.
Depois do avô, a “coroa” do Espermacete passou antes pelas cabeças da mãe e prima, até que chegasse em Nildes. Como a quarta pessoa na geração de mestres, ela acredita que a própria história do grupo é a força motriz que faz com o que samba de roda permaneça vivo e ativo. Nildes conta que, apesar do amplo público-alvo que o Espermacete deseja atingir, acolhendo e levando cultura e ancestralidade para pessoas de todas as idades, os mais jovens são um foco importante para o grupo. “Minha filha, [nós vamos] buscando, levando, incentivando, vamos [dizendo]: ‘venha, é bom, é tradição, é raiz, vamos buscar as nossas raízes, vamos saber de onde a gente veio e pra onde a gente vai’, o que fazemos é bom”, diz.
Gente de todas as idades
E é nessa mistura que o grupo reúne atualmente 25 membros, entre crianças, adolescentes e pessoas na terceira idade. A integrante mais jovem tem 5 anos. Dona Antonia, aos 85 anos, a mais velha, já perdeu as contas de há quanto tempo está no Espermacete. Todos juntos e unidos em prol de uma conexão com o que há de mais rico: a ligação de afeto com quem veio antes, com quem lutou para estabelecer uma cultura e se fazer respeitar.
Nesses mais de 30 anos de história com o Espermacete, Mestra Nildes entende que a participação da população local é fundamental para a execução desse projeto, feito da comunidade para ela mesma.
Assista:
Além das participações em cortejos religiosos como o ‘Terno de Reis’, o grupo participa de quadrilhas juninas locais, celebração do Dia do Samba, oficinas e a Vivência de Trançado e Samba. Limitações espaciais não existem para quem tem a garra de levar continuidade para os seus.
“O ‘Reisado’ todo ano eu faço, é um movimento que, por sinal, é grande, vem gente de fora. Além da quadrilha junina, que já vou começar os ensaios, tenho também o ‘Trançado e Samba’, que é do grupo Espermacete. O ‘Trançado e Samba’ é uma vivência com palha de piaçava, e ali vamos ensinando as pessoas. [Fazemos] chapéu, esteira, bolsas… tudo isso”.
Fazer história é celebrar encontros
Em 34 anos se acumulam histórias e encontros suficientes para fazer Nildes recordar com saudosismo e com o sorriso que escolheu levar para a vida. Bule-Bule, Gilberto Gil, Beth Carvalho e Mariene de Castro foram alguns dos encontros que levaram o grupo a alçar outros voos, chegando a pousar, inclusive, em diferentes estados, como o Rio Grande do Sul.
Para não dizer que santo de casa não faz milagre, no álbum ‘Vivão’, de 2022, da banda camaçariense Afrocidade, o grupo participa com a cantiga ‘Canoeiro’ como vinheta entre as músicas da banda. “Essa música é do grupo, a gente foi e cantou com ele [MC Macêdo, vocalista da banda]. Ele disse que nas aberturas dos shows dele ele sempre sai com essa música, e eu digo ‘que bom, isso é maravilhoso!’”, relembra, com um sorriso de orelha a orelha.
A Mestra afirma que ampliar o alcance do grupo com participações de outros artistas é um dos objetivos para o futuro. “Nós precisamos expandir e mostrar também um pouquinho da nossa cultura, porque a gente conhece muito pouco as culturas de lá de fora. Então, nada mais justo que uma troca de experiência, uma troca de vivências”, diz ela, refletindo sobre as possibilidades e oportunidades de levar o som da marcação, do timbal, do maracá, do caxixi e do repique de mão para outros espaços.
Fazer cultura ancestral é enfrentar barreiras
O grupo espalha cor e alegria por onde quer que vá. Apesar das saias das sambadeiras rodando sempre floridas e coloridas ao balanço das cantigas, nem tudo são flores para quem assiste dia após dia a amargura do preconceito. Mas não é a isso que Nildes ou os integrantes do grupo se atêm: enfrentar o racismo é passo fundamental para romper barreiras e levar adiante os ensinamentos ancestrais.
“Independente do racismo, independente de qualquer coisa, eu vou ali pra mostrar o que eu quero mostrar, o que eu quero fazer, e fazer com que as pessoas também vejam o que eu estou fazendo e que abracem sem o preconceito”, afirma.
Para uma mulher de gerações, que busca atravessar quem passa pelo seu caminho com o que veio dos ancestrais, a motivação para dar sequência ao trabalho é pensar no futuro e, sobretudo, agir no presente.
Assista:
Quinta geração
E quem melhor para representar a história do Espermacete que a próxima geração? Musicista, contramestre e presidente do grupo, Mileide Bomfim, 30 anos, participa das atividades desde que se entende por gente e tenta levar o legado da sua mãe, Mestra Nildes, e da família adiante.
“Logo de começo eu fiquei na parte da porta-estandarte, depois eu fui sambadeira, depois disso tocava um pandeirinho, umas coisas mínimas. Teve um caso adverso, e o rapaz que tocava o timbal no grupo teve que se afastar. Minha mãe me incentivou, [disse:] ‘vamos, você vai ter que assumir o timbal’, [eu disse:] ‘mas eu não sei’. Eu fui devagarzinho, e hoje em dia ela que me incentivou a estar na área da música”, conta.
Estar em conexão com seus ancestrais é fonte de paz e conforto para Mileide. “Primeiro de tudo, me ajuda bastante com a ansiedade, que hoje em dia muitas pessoas têm, e além do mais é um reconhecimento, não só aqui no grupo, [mas] me incentivou a fazer parte de outras bandas”. Ela completa dizendo que “tem alguns preconceitos ainda, mas eu tô aí seguindo adiante”.
O agradecimento por fazer parte de algo maior Mileide expressa retribuindo para outras pessoas a oportunidade de partilhar do sentimento. Para ela, acolher a comunidade, pessoas de outros locais, colocar crianças e adolescentes, até mesmo adultos, nessas atividades culturais, é uma forma de tornar o mundo um lugar melhor.
“É uma aprendizagem, [você] conhece lugares diferentes, pessoas diferentes, condutas novas, é uma experiência boa, e pra mim é gratificante e prazeroso. É uma honra participar do grupo que é de família, me sinto conectada com minhas raízes”, afirma.
Assista:
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