Enegrecer
Identidade e negócio: como a relação com o próprio cabelo levou mulheres negras a empreender
Em uma sociedade com padrões estéticos pré-estabelecidos, empresárias desafiam o sistema e transformam suas ideias em pontes para valorização racial.
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Emile LiraEm uma sociedade permeada por questões sociais que arquitetam padrões de beleza estruturados, destacadamente, em aspectos do machismo e racismo, para pessoas não-brancas, o reconhecimento das características físicas muitas vezes resulta em um processo de construção do sentido de pertencimento. Mais recentemente, com a expansão das discussões sobre empoderamento, as mulheres negras vêm percorrendo um caminho de não somente aceitação, mas valorização da identidade.
Para algumas, a relação com o próprio cabelo, um dos principais traços da estética, se transformou em empreendedorismo. É o caso de Nay Souza, 46 anos, proprietária do Raça Brasil, loja que comercializa cabelos humanos em Camaçari. Em entrevista ao Destaque1, ela conta sobre o início da atuação no ramo e como está intimamente ligado ao processo de autorreconhecimento.
“Na minha juventude, por conta do meu cabelo ser crespo, não encontrava ninguém ou nenhum profissional que conseguisse deixá-lo do jeito que eu gostaria que ficasse, então eu decidi pesquisar. Na época, não tínhamos internet, eu utilizava revistas para estudar sobre cabelos crespos, e, nesse processo, descobri que este era um caminho que eu gostava”, conta.
Durante o processo, Nay encarou outro desafio profissional. Em meados de 1995, quando tinha 18 anos, ela foi convidada a ser dançarina em uma banda da cidade. “O meu cabelo, por ser muito crespo e curtinho, não se enquadrava no padrão de glamour que era estar em cima de um palco, então fui presenteada pelo grupo com um cabelo de extensão. Quando fui no salão para aplicar, o profissional me virou de costas ao espelho, mas fiquei prestando atenção, tentando perceber como era que isso era feito”, relata.
Quando saiu da banda, Nay resolveu retirar a extensão e colocá-la na irmã. “Fui fazer o teste. Eu não tinha acesso a cursos, informação escrita, mas fiz o cabelo dela e gostei do resultado, recebi elogios e fui buscando fazer as melhorias. Mas ainda não atuava profissionalmente com cabelos nessa época, fui trabalhar como manicure”, lembra. Posteriormente, Nay teve o primeiro contato com tranças e passou a fazer em pessoas próximas.
“Um dia, fui comprar a fibra para fazer tranças, e tive a ideia de mudar, decidi usar cabelo de verdade. A partir dessa decisão, abri o meu salão e comecei na trajetória que me trouxe onde estou hoje”, conta Nay.
O Raça Brasil atende um público diverso, e, para os clientes, Nay busca transmitir um pouco da relação que ela passou a estabelecer com os cabelos. “Eu sempre digo que aqui eles não vêm simplesmente comprar o cabelo, o produto eles levam como brinde. Quando o cliente vem na loja, é justamente em busca da autoestima. Isso tem muito a ver com todo esse processo de, antigamente, não termos tanto contato com quem sabia mexer com determinados cabelos, e hoje, ele saber que pode usar o cabelo do jeito que quiser”, pontua.
Para Nay, a relação que as pessoas negras podem estabelecer com o próprio cabelo tem se transformado ao longo dos anos.
Assista:
Mulheres negras e mercado estético
Estudos apontam que o número de mulheres empreendedoras vem crescendo no Brasil. Segundo dados da Serasa Experian, as mulheres comandam 43% de todos os negócios do país, e 73% das mulheres são sócias de alguma pequena ou média empresa. De acordo com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o setor de beleza, nos variados nichos, é o que mais atrai mulheres empreendedoras.
No recorte racial, na Bahia, 79% dos empreendedores são negros, conforme o IBGE, e, de acordo com pesquisa de análise realizada pelo Sebrae, desse número, 54% é do público feminino, o que aponta a crescente presença de mulheres negras no mercado baiano.
Nesse cenário, a jovem Rozana Kelly também encontrou caminhos no empreendedorismo, fruto da experiência que vivenciou com o próprio cabelo.
“Em meados de 2015, decidi parar de usar química no cabelo e comecei a usar trança. Primeiro, fazia somente em mim, mas depois fui vendo vídeos e passei a também trançar o cabelo das minhas amigas”, conta, ao destacar que o início da trajetória de trabalho se deu de maneira espontânea. Em 2018, ela decidiu abrir o estúdio Afra Style, no qual atua com box braids, dreadlocks e tranças nagôs.
Assista:
A mudança da relação que Kelly adotou com o próprio cabelo ao longo dos anos, especialmente na construção da identidade, é um aspecto que ela tenta passar para as pessoas que atende. “Aqui vem muitas mulheres, inseridas em diversos contextos sociais, que passam por diferentes coisas e que o cabelo exerce uma certa influência. Por exemplo, nas situações de mercado de trabalho, em que são exigidos determinados padrões, muitas vezes a pessoa acaba se adequando”, afirma.
Para ela, a transição capilar – processo para retirada da química e deixar o cabelo natural – representa um momento em que a mulher passa a enxergar beleza no cabelo com a curvatura e textura que possui, e é um momento de libertação e reconhecimento.
Assista:
Kelly também corrobora que o reflexo das mudanças sociais no mercado de estética tem ampliado o acesso a produtos e cuidados capilares para pessoas negras. “Antigamente não achávamos. Aos poucos, as grandes empresas têm se aberto, viram que está dando lucro e surfam nessa possibilidade de lucrar, assim como a mídia tem dado mais espaço a esta estética. Então tiramos benefício disso, tanto nós enquanto profissionais quanto as pessoas que têm a possibilidade de representatividade”, diz.
A empreendedora define que a marca Afra Style vai além da beleza e estética. “É a minha identidade e um conceito, o qual tento passar diariamente para o público, e almejo expandir cada vez mais”, conclui.
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