Enegrecer
Segurança nos quilombos: “A gente nasce pra sobreviver diariamente e resistir”
A Bahia concentra 29,9% de todos os quilombolas do país e é o estado onde mais líderes vivem insegurança.
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Elaine SanoliA história se reinventa todos os dias. Se no século XVI os negros escravizados fugiam dos senhores de engenho em busca de uma existência com mínimas condições de humanidade, hoje seus descendentes lutam para manter sob posse coletiva o território que um dia acolheu seus antepassados.
O ano de 2023 marca pela primeira vez a identificação da população remanescente de quilombos a partir do Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A Bahia, o estado mais negro do país com cerca de 80% da população autodeclarada negra (pretos e pardos), tem também a maior concentração de quilombolas do Brasil. Hoje, 1.327.802 pessoas se reconhecem enquanto quilombolas em todo o país, cerca de 0,65% de todos os cidadãos aqui residentes. Destas, 397.059 estão na Bahia, cerca de 29,9% de toda a população quilombola brasileira.
Essa população vive diariamente verdadeiras batalhas para manter o território onde residem há gerações. “A gente é acostumado a dizer que, o ser humano, ele nasce pra viver, e nós, os quilombolas e os povos originários, a gente nasce pra sobreviver diariamente e resistir. E resistir pra gente manter, porque nós somos mantenedores dessa natureza, desse ar condicionado natural que tem”, destaca a líder Rejane Rodrigues, do Quilombo Quingoma, localizado em Lauro de Freitas.
“E a gente tem a ancestralidade que nos mantém vivos e nos dá força pra diariamente estar vivendo essa batalha, essa luta em prol de um coletivo, porque as pessoas hoje não visam o coletivo, elas visam o que é que o capital vai proporcionar, e não essa sobrevivência”, afirma em entrevista ao Destaque1.
Dentre as inúmeras batalhas enfrentadas pela população quilombola na Bahia, além da questão territorial, a violência contra seus líderes tem sido um dos principais enfrentamentos travados. De acordo com dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), nos últimos 10 anos, ao menos 30 líderes foram assassinados, dos quais 11 foram líderes de quilombos localizados na Bahia. O último caso ocorreu em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador (RMS).
Caso Mãe Bernadete
No último dia 17 de agosto, Maria Bernadete Pacífico, de 72 anos, líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, foi assassinada na própria casa, onde estavam presentes os três netos, com 22 tiros, dos quais 12 foram no rosto.
Mãe Bernadete estava sob o programa de proteção a defensores dos direitos humanos. No quilombo havia sete câmeras que deveriam fazer a proteção da ialorixá, entretanto, apenas três estavam em pleno funcionamento. A líder possuía um histórico de luta pela posse da terra da comunidade quilombola e chegou a relatar que vivia sob constantes ameaças. Em 2017, o seu filho, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, popularmente conhecido como Binho do Quilombo, foi assassinado, também a tiros.
“A última vez que ela se fez presente em público, pra denunciar as coisas que ela passava, foi aqui, com a ministra do Supremo [Rosa Weber]. A primeira ministra do escalão do Brasil esteve aqui pra escutar, e nesse momento ela fez essa denúncia. Quinze dias depois, ela veio a ser assassinada brutalmente”, conta Rejane Rodrigues.
Vejam esta declaração de Mãe Bernadete, feita no dia 27 de julho, deste 2023, à ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, quando ela visitou comunidade na Bahia. pic.twitter.com/jXHQWMhItr
— Olívia Santana (@oliviasantana65) August 18, 2023
Em conversa com o Destaque1, Rejane lembra que ela e Mãe Bernadete vinham de uma relação de fortalecimento mútuo, dadas as similaridades entre as realidades que viviam. “Nós tínhamos um diálogo, a gente vivia um apoiando os outros. Pra gente quilombola, [a mensagem] é que a gente se cale e que fique dentro de casa, que fique no anonimato, no invisível, mas isso faz com que a gente vá pra cima. Acima do medo, a coragem de lutar por um dia melhor coletivamente”, relata.
Até o último dia 1º, três homens suspeitos de cometer o crime foram presos. A Polícia Civil continua com as investigações.
Assista:
Danos morais coletivos
A Educafro Brasil – Regional Bahia ingressou com uma ação civil pública por danos morais coletivos contra a comunidade afro-brasileira, por conta da morte de Mãe Bernadete. O processo, apresentado em 23 de agosto, no Fórum Ruy Barbosa, em Salvador, solicita a indenização de R$ 143 milhões.
“O objetivo é buscar uma reparação, até porque é uma ação civil pública, como foi colocada, já que infelizmente houve uma ineficiência por parte do governo do estado na proteção da vida de Mãe Bernadete. Isso aí foi o que custou a vida dela, e por ela ser a 11ª quilombola assassinada de forma cruel, já que o filho dela também, há seis anos atrás, foi assassinado, e até hoje não foi elucidado o crime. Nós entendemos que teríamos que entrar com ação contra o governo pedindo a reparação por danos coletivos em prol da comunidade negra”, explica Marinho Soares, advogado criminalista e professor integrante da entidade.
“Mãe Bernadete foi assassinada depois de conversar com a presidente do Conselho Nacional de Justiça e Supremo Tribunal Federal, a Ministra Rosa Weber, ou seja, depois dela pedir ajuda à autoridade máxima do Poder Judiciário. Ela foi assassinada com 12 tiros no rosto e 10 no tórax, o assassinato dela quer dizer muita coisa. É um apagamento não só de uma vida, de toda uma história, de toda uma militância, de toda uma luta em prol de um povo que busca nada mais nada menos que terras, que é o direito seu, como a gente fala, direito originário”, reivindica.
Conforme a Educafro, o valor pedido na ação será destinado a bolsas de estudos para pessoas negras no Brasil e exterior, com prioridade para a população quilombola; implementação de câmeras nos quilombos baianos, com filmagens em tempo real e conectadas às bases policiais mais próximas dessas comunidades, e com a sede da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA).
Titulação de terras na RMS
Além de viverem em um contexto de insegurança dentro de seu território, os quilombolas vivem, ainda, a insegurança de não terem as terras onde vivem devidamente reconhecidas. De acordo com dados do Censo 2022 do IBGE, cerca de 87,4% dos quilombolas do Brasil não residem em territórios oficialmente delimitados.
A supervisora de disseminação de informações do IBGE na Bahia, Mariana Viveiros, explica que o processo de reconhecimento do território se difere do reconhecimento da comunidade enquanto quilombo. “Existem dois processos de oficialização dos quilombos, dos territórios quilombolas. Existe um processo que é a certificação, que é um pouco mais amplo no território nacional. Então você tem mais áreas certificadas pela Fundação Palmares como quilombos, e existe o processo de delimitação da terra, de reconhecimento da posse da terra, que normalmente é realizado pelo Incra ou por órgãos estaduais municipais ligados a essa questão da posse da terra”, esclarece.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem registrado atualmente 181 processos de demarcação de território quilombola em toda a Bahia em andamento. Desse total, oito já possuem, ao menos, partes do território demarcado. Na Região Metropolitana de Salvador, 11 processos estão em aberto aguardando titulação. Uma dessas comunidades que aguardam a demarcação é o Quilombo Quingoma.
De acordo com o Incra, Quingoma, em Lauro de Freitas, e Boca do Rio, em Candeias, estão em fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Segundo o instituto, o documento contém um “levantamento de informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, socioeconômicas, ambientais, históricas, etnográficas e antropológicas, obtidas em campo, com a comunidade e com outras instituições públicas e privadas”, para demarcar os limites geográficos do quilombo.
Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, está em processo de notificação dos titulares dos imóveis situados no território, que terão um prazo de até 90 dias para contestar o RTID. Após finalização da etapa e julgamento das contestações, uma portaria é publicada no Diário Oficial da União reconhecendo as terras oficialmente. Cordoaria, em Camaçari, ainda está na fase inicial de abertura do processo de solicitação da demarcação.
Quilombo Quingoma
Apesar de estar caminhando para a demarcação, a líder do quilombo, Rejane Rodrigues, denuncia a dificuldade para reconhecimento e proteção da área total da comunidade. “Nós temos em curso uma ação, via Ministério Público Federal, onde o Ministério pede na ação que não seja construído nada dentro do território a não ser que titule logo o perímetro da comunidade. Hoje nós temos um perímetro no relatório antropológico de 1.284 [hectares], e eles querem dar 288 hectares, o estado e a gestão municipal. Como não existe uma lei específica que proíba construções dentro do território, nós vimos sofrendo com a especulação imobiliária, que vem tomando conta do território como um todo”, alerta.
Assista:
Ao Destaque1, Rodrigues conta que desde 2015 a comunidade vem sofrendo com as intervenções do Estado dentro do território da Quingoma. Em 2018, houve a construção da Via Metropolitana, cortando o quilombo ao meio, segundo a representante. Anos depois, em 2021, foi construído o Hospital Metropolitano, que atendeu em caráter emergencial pacientes com Covid-19.
“E vale salientar que esse hospital foi construído em cima de uma trilha de alecrim, onde a gente fazia a passagem pra levar nossos mortos”, informa a líder.
“Hoje o que está de eminente no território é o chamado Bairro Novo. Nos 50% do verde que a gente ainda protege, eles querem construir um bairro novo pra burguesia. Essa é uma das inúmeras coisas que nós enfrentamos aqui no Quilombo Quingoma, além da precariedade de não ter políticas públicas na comunidade. Hoje a gente não tem um transporte [público] pra gente se locomover daqui, a gente só tem os alternativos. A água que a gente tem não cai todos os dias, energia tem pouco tempo que chegou, e nós não temos uma UBS [Unidade Básica de Saúde] aqui, nenhum posto de saúde da família”, denuncia.
Desde 2013, a comunidade aguarda a titulação das terras pelo Incra, com morosidade do processo e consequente especulação imobiliária aliada à pandemia de Covid-19. Os impactos também são percebidos em uma das principais atividades econômicas do quilombo: a agricultura familiar.
“Antigamente nós vivíamos da caça, da pesca e do plantio. Hoje, basicamente, a gente tem os quintais produtivos, onde as famílias plantam para o consumo e plantam também pra fazer feiras. Agora não [mais], por conta da pandemia que veio e acabou ocasionando de que ninguém mais está fazendo a feira, mas continua plantando pra alimentar suas famílias”, relata Rodrigues.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi) para esclarecer aspectos relacionados às políticas públicas do Governo do Estado direcionadas para a população quilombola na RMS, mas não houve retorno, devido à incompatibilidade de agenda da Sepromi.
Relação cultural e histórica
Apesar das difíceis lutas travadas diariamente, o Quilombo Quingoma existe e resiste desde 1569, quando os primeiros navios vindo de África chegaram a Portão, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, e logo, havia pessoas para se refugiarem. Hoje, por lá, vivem cerca de 650 famílias, totalizando aproximadamente 4.856 pessoas.
“A Bahia tem a maior população quilombola em números absolutos e o segundo maior percentual. O percentual maior é só do Maranhão. Eu acho que mostra claramente a importância da população negra. Quando você junta as pessoas que se declaram pretas ou pardas, ela é vastamente predominante no estado, ela representa cerca de 80% da população do estado, mas não apenas a cor da pele está refletida no quilombola, mas também uma outra identificação, uma identificação com uma ancestralidade, cultura, costumes, território de luta, de combate, de resistência à escravização, que é muito importante no estado”, afirma Mariana Viveiros, do IBGE.
Para Rejane Rodrigues, manter a comunidade viva em luta é manter viva a história da população negra na Bahia. “Na realidade, é você sair das páginas do livro das pessoas que escrevem e você sair do anonimato. Hoje mesmo, nós temos uma ferramenta que é pela primeira vez na história do mundo, do Brasil: o IBGE vir nas comunidades, identificar essa comunidade, tirar essa comunidade do invisível, e que agora não são os gestores de cidades que vão dizer que tem 140, 100 quilombolas. Quem está dizendo que somos quilombolas somos nós”, vibra.
Assista:
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