Enegrecer
Culinária ancestral reflete memória e afeto em tempos de alimentação industrializada
“Nós somos continuidade sempre”, destaca chef Solange Borges, idealizadora do projeto ‘Culinária de Terreiro’, sobre fortalecimento da cultura de matriz africana a partir da gastronomia.
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Elaine SanoliAlimentação é um dos aspectos culturais mais facilmente repassados ao longo dos anos. Em um país baseado na diversidade e miscigenação, a preservação da culinária ancestral se constrói diariamente, em especial através dos aprendizados adquiridos pelas comunidades afrodescendentes e indígenas que por estas terras passaram.
“Não existe o ensinar. É assim: ‘Fulano, corta um tomate. Fulano, corta cebola. Pega não sei o quê ali’. A gente vai aprendendo naquela afetividade”, diz a chef de cozinha Solange Borges.
Solange é hoje um dos grandes nomes da culinária ancestral em Camaçari. Em entrevista ao Destaque1, a empreendedora conta que sua trajetória no ramo começou ainda na infância. Vinda de Mata de São João, a filha de baiana de acarajé, desde que se entende por gente, vive cercada da ancestralidade que a comida de raiz africana lhe proporciona enquanto prática.
“Com 9 anos, mainha veio para Camaçari, e aí ela começou a empreender o tabuleiro da baiana, ali na Praça Montenegro. Eu era a filha mais velha, então eu carregava o tabuleiro, carregava o carrinho de mão. A partir daí eu comecei a me desenvolver. Não tinha habilidade ainda de fritar, porque eu ainda era muito jovem, não tinha muita experiência, mas eu já fui aprendendo com ela, fui vendo ela fazendo, já lavava feijão, já catava o camarão, e aí eu segui nessa lógica, nesse aprendizado”, conta.
Nas redes sociais, ela exalta a prática da culinária baseada nos aprendizados afrodiaspóricos e indígenas, que figuram a base da alimentação brasileira. Para Solange, é importante que esses conhecimentos sejam replicados a partir da perspectiva de quem vivencia diariamente essa relação cultural, em prol da valorização e reconhecimento da cosmovisão trazida do continente africano junto à população escravizada.
“Já chega da gente ser citado, a gente tem que ir e se mostrar mesmo. Mostrar o que a gente sabe fazer. Mostrar os nossos valores, mostrar os nossos conhecimentos. Não que outras pessoas venham, peguem esses conhecimentos e desenvolvem”, afirma.
“É esse o propósito que a gente traz aqui, e a gente quer mesmo é inspirar outras pessoas e fortalecer o que a gente já tem na nossa comunidade. Nós somos continuidade sempre. Nós somos o povo que foi escravizado, viemos no navio, e a gente continua”, completa.
Produção agroecológica
Acarajé, caruru, vatapá, moqueca de ovo com mamão verde, carne de charque com farofa d’água, folha da taioba, beiju rústico, sarapatel e xinxim são apenas algumas das tantas receitas que aproximam Solange da tradicionalidade presente na comunidade da qual faz parte.
Desde 2014, junto às mulheres no terreiro de candomblé e na Agrovila de Pinhão Manso, no Santo Antônio III, a chef de cozinha tem se dedicado ao cultivo de plantas alimentares, utilizadas na composição das receitas e para o comércio.
Assista:
“A nossa base é o aipim, o dendê de pilão que a gente produz. A comida que a gente faz aqui é com o nosso dendê, o dendê produzido na Agrovila Pinhão Manso ou em alguns parceiros, e o aipim que a gente também produz lá. Tem o nosso beiju, nossos produtos na bolacha de goma, que a gente faz tudo derivado do que já produz na nossa Agrovila e nos nossos parceiros também”, comentou. Além desses itens, temperos como coentro largo e urucum, uma forma mais orgânica e tradicional de corante, são produzidos pela comunidade de Pinhão Manso.
Culinária de Terreiro
Solange toca o projeto do ‘Culinária de Terreiro’ com esforços para dar continuidade à ancestralidade impressa nos pratos mais clássicos. Com ele, a chef recebeu diversas pessoas na comunidade e já viajou pelo país levando o seu conhecimento gastronômico, por meio de workshops e aulas-show.
Em setembro deste ano, a ideia ganhou um novo capítulo. Localizado em um espaço completamente distinto da Agrovila, o Culinária de Terreiro inaugurou um restaurante no Boulevard Shopping Camaçari, que, na visão da chef, é parte central do projeto de valorização da culinária tradicional de origem africana.
Assista:
Solange conta que a ideia do restaurante é desenvolver um projeto que possa facilmente se dispersar por outros espaços, para a expansão da culinária ancestral.
“Para poder ter uma franquia ou você poder fazer uma filial, você precisa testar, precisa ter os processos, e lá [na Agrovila] a gente não conseguia. Aí um dia eu cheguei aqui no shopping e pensei: ‘bem que eu podia botar um restaurante aqui’. As coisas fluíram, e a gente disse: ‘quando a oportunidade aparece, você precisa pegar a oportunidade’. E assim eu me fiz”, relata a chef.
Para além da questão cultural, de conservação de conhecimentos ancestrais, Solange lembra, ainda, da relação com outros fatores, como o meio ambiente e a indústria alimentícia e farmacêutica.
“Meu sonho é que várias pessoas possam fazer acarajé e que várias pessoas possam servir acarajé, porque às vezes eu chego num lugar, chego num aniversário, e só tem coisas que não tem necessidade: quibe, coxinha, empada. Tem tanta coisa que a gente pode servir, uma acarajé, um abará, um beiju, tantas outras coisas que a gente pode servir, e a gente fica só retroalimentando essa indústria, a indústria transgênica, a indústria do medicamento”, critica.
Solange acredita que a partir de uma base agroecológica, a alimentação pode ser muito mais aproveitada, visto que “os povos tradicionais, as pessoas que eram mais simples, aproveitavam aquilo que tinha no seu quintal, no seu entorno para se alimentar”.
A comida tradicionalmente ancestral tem por base temperos e vegetais comuns, uma “comida simples com produtos simples: tomate, cebola, pimentão, cominho, corante, alho”.
O acarajé
O tradicional e popular acarajé, com origem no continente africano, na parte ocidental – conhecido por lá como akara e, especificamente no norte da Nigéria, chamado de kosai –, é um dos pratos favoritos de Solange.
“Quer me deixar feliz, me chama pra fazer um acarajé, que eu me espalho mesmo, me amostro mesmo”, brinca a chef com entusiasmo.
A receita, baseada no feijão-fradinho, faz parte, historicamente, de oferendas de rituais do candomblé. Na sua versão consumida em larga escala na Bahia e Brasil afora, o bolinho de feijão ganha temperos como sal e cebola antes da fritura no azeite de dendê. Solange explicou brevemente o processo básico de produção da iguaria.
Assista:
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