Opinião
Sobre o tempo e a vida – My Own Man
O doc acaba revelando complexidades com as quais qualquer um pode se identifica.
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Ayla CedrazNa última sexta vi, na Netflix, um documentário aparentemente pouco conhecido: My Own Man. Escrito, dirigido e filmado por um sujeito chamado David Sampliner, o doc pretende ser um retrato íntimo e detalhado sobre a sua vida, especialmente dos motivos que o levaram, na medida em que crescia, a se sentir cada vez menos aplicável a qualquer modelo tradicional de masculinidade que conhecia.
Enquanto assistia, contudo, vi que se tratava de mais do que isso. David acaba revelando complexidades com as quais qualquer um pode se identificar, principalmente no que diz respeito ao grau de influência emanado por nossos pais sobre o modo como crescemos. A visão que nossos pais têm do mundo, a forma como eles se posicionam na vida e, ainda mais do que isso: a mais insignificante das frases ou o menor dos gestos por eles ditos e feitos podem reverberar em nossas mentes mil vezes amplificados, podendo ser representados como a energia diária que consumimos na infância, o nutriente que nos coloca em determinada direção de humanidade.
Sampliner iniciou suas gravações na época em que sua mulher esperava o primogênito do sal e, por isso, uma grande preocupação dele era se seria ou não capaz de ser para o menino uma “figura paterna” decente, o que, em seu entendimento, englobaria todos os elementos conhecidos (e antiquados) do universo masculino. Ele não se via como uma pessoa de princípios firmes, definidos, que poderia ensinar qualquer coisa a uma criança. Logo se entende onde o problema do cineasta começa, e ele próprio guia o espectador. O pai é, entre os familiares que nos vão sendo apresentados, um grande foco das câmeras. Cirurgião aposentado, símbolo de sucesso e firmeza para toda a família, o pai de David representa uma grande questão em sua vida, justamente por ser tudo aquilo que o filho não é. Os aspectos do pai que são motivo de admiração para os outros, para David são sinônimos de impenetrabilidade e imposição. Ele conta que nunca sentiu proximidade entre eles, e que nunca viu espaço, até aquele momento, para conversar com o pai sobre como se sentia diferente. É muito interessante testemunhar os primeiros passos dessa conversa, que é quase como se pai e filho se conhecessem pela primeira vez.
Em determinado momento, Sampliner questiona o pai sobre as razões pelas quais ele, muitas vezes, chegava em casa do trabalho com um humor muito irritado, e da sua suscetibilidade a gritar. A resposta do pai é quase engraçada: “eu não posso dizer porque não lembro”. Em resumo, fatos que ocupavam tanto e representavam tanto peso na mente de David sequer habitavam a consciência de seu pai. Se a conversa não existisse, ele nunca saberia. Sobre isso, em outro momento revelador, o pai de David chega a falar sobre o seu próprio pai. Ele conta que se tratava de um homem ainda mais distante do que ele teria sido para o filho, e que lhe foi ensinado desde cedo que seu papel no mundo era somente estudar e trabalhar para ser alguém.
A percepção das gerações de sua família e conversas com seus irmãos sobre como a criação que receberam dos mesmos pais se refletiu em suas vidas fizeram David encerrar o documentário entregando uma carta a seu pai. Escreveu um pedido de desculpas por tê-lo culpado por sua insegurança de ser quem era, como se desde o início lhe tivessem dito que era errado. David entende ter sido, ele próprio, a sua única obstrução real.
Finalizo dizendo que o melhor desse documentário é mostrar como a passagem do tempo é um bom lugar sobre o qual conversar sobre o passado. Quando crescemos, é incrível como a percepção de acontecimentos marcantes são tão diferentes das percepções que tínhamos mais novos e que, naquele momento, pareciam tão verdadeiras. É bom descobrir novos ângulos para as coisas.
Ayla Cedraz estuda Letras Vernáculas e Inglês na Universidade Federal da Bahia. Escreve às segundas, a cada três semanas. jornalismo@destaque1.com
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