Enegrecer
Nas mãos do artista Augusto Leal, Simões Filho é centro de debate sobre políticas culturais
Com intervenções, obras e ativismo, o simõesfilhense transforma o olhar sobre a cidade localizada na RMS.
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Elaine SanoliAtenção, caro leitor: antes de iniciar a leitura desta reportagem, convido você a (des)pensar e dispensar tudo que você acredita que conhece sobre Simões Filho. O texto a seguir contém uma visão nova, particular e artística de quem vive a cidade em sua totalidade.
Da pracinha da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, ao longe, é possível observar uma das intervenções artísticas. Uma caixa de energia pintada de vermelho com uma única frase em amarelo e branco: “como (des)pensar a cidade?”, convida o autor. Um alvo de três metros de diâmetro pintado no mais chamativo tom de vermelho em uma parede do Espaço Cultural Municipal de Simões Filho, em ruínas, na Praça da Bíblia, está mais ao centro da cidade. Entre as artes, “que só acontecem em Simões Filho”, o artista plástico Augusto Leal, 37, relata, como quem conta qualquer causo do cotidiano, de onde parte a inspiração para cada uma das intervenções.
“Tudo que eu faço, tudo que eu desenvolvo enquanto artista, mas também enquanto morador da cidade, enquanto pai, enquanto filho também, está muito relacionado a essa vivência no território [de Simões Filho], tem essas raízes aqui fincadas”, afirma.
As raízes abriram caminho para todo um repertório artístico construído pensando unicamente na cidade e em como a territorialidade do município localizado na Região Metropolitana de Salvador (RMS) atravessa os simõesfilhenses.
Para além da violência
Simões Filho está posicionado no pódio dos três municípios mais violentos da Bahia, em terceiro lugar, e na liderança da RMS, de acordo com levantamento do Atlas da Violência 2024, com 81,2 mortes por 100 mil habitantes em 2022. A fama, por ser uma cidade violenta, não faz jus à totalidade da vivência no território. A forma de inverter a realidade, para Augusto, foi elevar a autoestima da população através da arte e fazer com que fossem disseminadas outras informações sobre o cotidiano do município.
“Eu entendo como uma forma de ativar essa autoestima coletiva aqui na cidade, das pessoas perceberem: ‘olha, não tem só violência, tem outra coisa acontecendo’”, diz.
Embora a ideia seja ver Simões Filho para além da violência, esse ainda é um tema recorrente em suas obras, mas, aqui, o princípio é levantar questionamentos e fazer a população pensar sobre o mundo que a cerca. Racialidade é também assunto de debate ao longo da trajetória artística de Augusto, o que, em certa medida, também se relaciona com a própria territorialidade.
“Simões Filho é uma cidade muito negra. Você anda pelas ruas da cidade, você vê muitas pessoas negras. Historicamente, é uma cidade que era de fazendas, de coronéis, e tem uma relação escravagista muito forte também aqui no território. É uma cidade que tem muitos terreiros de candomblé e quilombos que são conhecidos nacionalmente”, observa.
“Há muita violência nessa presença dos nossos corpos negros, da violência policial, de tudo. A gente cresceu, e aí eu lembro muito da minha infância, com as nossas mães muito preocupadas com o nosso corpo exposto à rua, exposto ao mundo”, rememora.
Na obra “O Jogo!”, por exemplo, o artista discute a racialidade no Brasil e as disparidades de oportunidades entre as diferentes tonalidades de cor de pele da população. “Eu começo a trazer isso para o meu trabalho porque eu percebo que em algum momento eu encaro ou encontro esse tipo de violência também dentro do circuito de arte, dentro das relações culturais, políticas, em tudo quanto é lugar. Enquanto sujeito negro, atravessado pelo racismo todo dia, continuamente, desde a infância, naturalmente isso vai começar a se expressar no que eu faço também”, conta.
Assista:
Lugares de permanência: Simões Filho e arte
Como a maioria dos semelhantes de sua classe, Augusto desenvolveu o gosto pelas artes ainda na infância. O que era apenas brincadeira com lápis de cor e papel virou trabalho quando o jovem Augusto ingressou na Universidade Federal da Bahia (Ufba) no curso de Design, aos 18 anos. Embora não fosse categorizado como artes plásticas, o curso da Escola de Belas Artes proporcionou o contato e o conhecimento de mundo necessários para ingressar na profissão. Durante os mais de 30 km de distância para a universidade, as conexões entre vivência e arte fizeram o jovem simõesfilhense entender o que ele gostaria de transmitir através do próprio trabalho.
“Nessa época, especialmente, que eu estava pensando essa dinâmica, tendo acesso a outras experiências fora da cidade, eu comecei a perceber que o deslocamento, ir para Salvador, também era um privilégio, era uma vantagem social que eu tinha e que muitas pessoas aqui não tinham condições de fazer esse trânsito, e que era importante que essas oportunidades estivessem aqui dentro do território também”, opina.
Foi então que Augusto bateu o martelo: apesar das oportunidades se concentrarem nos grandes centros culturais e metrópoles, ficar em Simões Filho significa empurrar portas e criar possibilidade para o desenvolvimento da arte e da cultura na cidade. Afinal, ir embora, mesmo sendo mais fácil enquanto indivíduo, deixaria a cidade no mesmo lugar. Como uma andorinha só não faz verão, o artista entendeu que a luta precisava ser coletiva entre os artistas locais.
“A gente começa a se reunir, assim, espontaneamente. A gente vai junto para a faculdade no ônibus, começa a trocar uma ideia, começa a conversar e promover esses encontros entre as pessoas, e depois a gente expande isso para a cidade, para a rua. A gente começou a realizar uma série de eventos nessa época para colocar em discussão essa precariedade da cidade, especialmente no campo de políticas públicas para a cultura”, conta.
Outra faceta desse projeto político foi concretizada através da representação na esfera do poder público. Em 2011, com outros artistas da cidade, Augusto ingressa no Conselho de Cultura de Simões Filho como representação da sociedade civil. Apesar da participação e reivindicação de investimentos mais efetivos na cena cultural por meio dos debates e conferências, o grupo encontrou verdadeiras paredes de aço, que inviabilizaram a luta pela arte no município.
“Há poucas famílias que estão no poder e que, de alguma forma, usufruem desse lugar para benefício próprio em detrimento da precarização e da socialidade para maioria da população. A gente percebeu que a estrutura institucional dessa macropolítica era muito difícil de ser transformada por esses instrumentos”, critica.
A partir daí, o trabalho de base nas ruas, nas periferias de Simões Filho, começa a ser intensificado. E é por essa razão que Augusto Leal nunca pensou, apesar dos convites, em deixar sua terra natal.
Todo artista tem seu palco
A arte imita a vida, e se a vida, nos centros urbanos, acontece nas ruas e nas pessoas que com ela se relacionam, o palco das artes de Augusto não poderia ser outro. O artista costuma caracterizar o espaço como “tudo aquilo que falta”. “A rua vira palco, vira museu, vira galeria, vira escola, vira universidade, vira tudo, vira lugar de encontro, lugar de lazer, de ir para se divertir, de se encontrar, de estar junto com as pessoas”.
Assista:
Uma mescla de crítica social e subversão com toques de elementos culturais populares. Em “Carro de Som” (2021), por exemplo, um veículo roda a cidade convidando a população a visitar o Espaço Cultural Irmão Inocêncio da Rocha, em ruínas desde 2014. “Na época, estava passando o Big Brother Brasil. Eu me apropriei daquela voz do ‘big fone’, daquele som, porque era um som que a galera já identificava”, revela.
Assista:
Na rua também foi criado o Museu de Arte de Simões Filho (Masf), em uma escadaria que liga a Avenida Elmo Serejo Faria à rua Vereador João de Oliveira Campos, no Cia 1. A ideia de construir um museu ao ar livre, com artes colaborativas, nasce na crítica da própria concepção de arte e do museu enquanto instituição.
O mesmo espaço que guarda um acervo de obras de valor cultural e artístico inestimável é, também, cercado de exclusões e “desacolhimentos”. Os museus, no formato tradicional que se construiu, afastam as pessoas da arte, acredita Leal.
“Eu entendo que a relação com o outro é um fator, talvez o principal, dentro da prática artística, das práticas culturais. É justamente nesse encontro com o outro, nesse acolhimento, nessa relação, que a gente vai conseguir se afetar, afetar nossa subjetividade e sensibilidade”, explica.
“A sensação que tive é que a experiência que os museus e exposições de arte criam, de forma geral, era uma experiência muito rápida, muito veloz […]. O museu, que deveria ser um lugar de permanência, se torna um lugar de passagem […]. Quando eu olhei para a escada, foi instantâneo, [pensei], se o museu, que deveria ser um lugar de permanência, se tornou um lugar de passagem, eu vou pegar um lugar de passagem e vou transformar em um lugar de permanência”, conta o artista sobre o espaço que completou seu primeiro ano no mês de junho.
Assista:
Voando nas asas da imaginação
Em meio ao marco de um ano do Masf, Augusto, pela primeira vez sozinho, levou à capital paulista o seu acervo de obras. O Centro Cultural São Paulo (CCSP), desde o dia 15 de junho, virou palco da ocupação CCSF – Centro Cultural Simões Filho. E por que não transformar Simões Filho em uma capital cultural?
Com uma faixa de 4×1 metros e o desejo de tensionar o debate sobre o acesso e investimento na cultura, Augusto insere a discussão sobre os potenciais de uma pequena cidade na Bahia no cenário de debate artístico do Sudeste do país. “Apresentei um projeto de mudança da fachada do prédio, do nome do perfil nas redes sociais e até dos crachás que os servidores do equipamento usam em suas rotinas de trabalho”, conta o artista em suas redes sociais.
Radicalismo à parte, se engana quem pensa que a ideia é apenas inverter posições e fazer da cidade baiana um polo cultural hegemônico. “O que eu quero com esse trabalho é justamente borrar essa relação entre capital e interior ou hegemonias regionais ou territoriais em relação a outro espaço, fazer com que isso deixe de existir, para que de fato não tenha essa relação de um lugar que está sendo super visibilizado, estruturado ou que tem muitos investimentos, em detrimento de outros que não têm”, reflete o artista.
A exposição CCSF fica em aberto na capital paulista até o dia 18 de agosto.
Para conhecer mais trabalhos de Augusto Leal, clique aqui.
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