Opinião
‘Caixa de Domingos’: a marca da escritora na ficção
Léa Rios, professora artista, parece fazer de si fonte e catapulta para a literatura.
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Ayla Cedraz“E a menina lembrou de algo que ainda iria acontecer”, escreve Léa Rios no texto que abre e dá nome ao livro de contos “Caixa de Domingos”. A frase se refere a uma personagem que, em meio a objetos antigos, une passado e presente, numa reflexão melancólica e atemporal sobre o tempo.
A obra, publicada de forma independente no ano passado, reúne 30 contos curtos, de fácil leitura, mas não por isso superficiais. Trata-se do tipo de texto que, como gosto de imaginar, uma pessoa pode ler no caminho para o trabalho, sem correr muitos riscos de sofrer acidentes com a cabeça baixa durante um trajeto a pé, ou sem dar tempo de cansar os olhos no balançar de um ônibus, para passar o resto do tempo com o olhar perdido, imerso no que leu.
Esta resenha, é preciso destacar, nasce do fato de que conheço a autora. Povoada pelas conversas que tivemos durante os anos e pelas observações que tenho guardadas de Léa enquanto habitante deste mundo, não pude deixar de ver saltar nos contos a mulher que os escreveu. Os bordados em “A cidade”; o saber indígena e a noção de estrangeirismo em “IN – Inteligência Natural”; a tendência aos abismos, como evitar ao limite exames médicos, em “O corte”; o não poder não pensar, apesar de por vezes evitá-lo, sobre a morte, em “Luz no túnel”, além de muitos outros exemplos, revelam tanto dessa escritora que cheguei a rir durante momentos da leitura.
Enquanto estudante de literatura, fiquei pensando sobre o efeito de conhecer ou não o autor de uma obra na experiência de leitura. Mais do que isso, me perguntei se Léa, ao escrever, tem uma visão de onde parte o tema do qual está tratando; se, conscientemente, se vê nos textos que escreve, ou se tudo acontece por acaso. Não afirmo que, por ver a autora, de alguma forma, surgir no texto, todos os contos partem de fatos vividos ou testemunhados. Trata-se de uma obra de ficção. Léa, aliás, a julgar pela maioria dos contos, parece ter uma preferência pela terceira pessoa, ou seja, assumir um narrador que, em certa medida, vê de fora a situação que conta. Há um interesse em falar de si através do outro? Até onde, afinal, podemos traçar essa linha do falso e do verdadeiro?
No conto “Brincando de casinha”, esse escrito em primeira pessoa, lê-se: “Passei o dia todo, introspectiva, tentando separar sonho de realidade. Afinal, qual é mesmo a diferença? Posso considerar os sonhos como experiência de fato? […] brinco de elaborar minhas narrativas de vida”. Emendo a discussão do sonho com o pensamento consciente. O pensamento não acontece, necessariamente. Podem nos ocorrer pensamentos, inclusive, impossíveis de acontecer. Mas não são eles parte do real? Não há resposta certa. Escrever é, afinal, o campo onde é possível e aconselhável levantar questões sem a obrigação de dar respostas. Que essa parte reverbere no leitor.
Léa Rios, além de ficcionista, é professora, desenhista, pintora, musicista… artista, enfim. Nascida em Miguel Calmon, mora em Conceição do Coité, interior da Bahia, há 30 anos. Por enquanto, “Caixa de Domingos” só pode ser adquirido através da Livraria Saronga [veja aqui], em Miguel Calmon, mas outras publicações, como “A Mulher que Lavava Ossos” — publicado pela editora Caravana [confira aqui] e que chegou a ser traduzido para o espanhol — e “Argola Farpada” podem ser encontrados na Livraria Escariz do Shopping Barra, em Salvador. Ao todo, Léa já publicou oito livros, com o nono a caminho, e segue lendo, escrevendo e publicando.
Esta é a primeira resenha de uma breve série sobre livros de autores baianos que serão publicadas semanalmente, às sextas. A intenção é instigar o leitor a conhecer e incentivar o trabalho desses autores, seja através da obra resenhada ou de outras publicações.
Ayla Cedraz é graduada em Letras Vernáculas com Inglês pela Ufba e mestranda em Literatura e Cultura pela mesma universidade.
*Este espaço é plural e tem o objetivo de garantir a difusão de ideias e pensamentos. Os artigos publicados neste ambiente buscam fomentar a liberdade de expressão e livre manifestação do autor(a), no entanto, não necessariamente representam a opinião do Destaque1.
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