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Aos infelizes: que pais e filhos temos escolhido?
Reflexões a partir de O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe.
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Ayla Cedraz“Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo”. É com esse primeiro parágrafo que somos convidados a entrar na narrativa do livro O filho de mil homens, publicado em 2011, cujo autor, o já bem conhecido Valter Hugo Mãe, é um dos autores portugueses mais destacados atualmente. Quase instantaneamente somos apresentados a um personagem, um homem, que com poucas palavras tem resumida toda a sua razão de existir, e um nome para não se esquecer: Crisóstomo. Logo descobrimos que, para Crisóstomo, assumir a tristeza de não ter um filho é o mesmo que enfim, abertamente, ativamente, procurá-lo. A procura é o motor que faz as engrenagens da história girarem. Pelas ermas paragens onde mora, Crisóstomo deixará que todos saibam que ele está decidido a cuidar e amar absolutamente qualquer filho que se encontre desprovido de um pai que lhe oferte esses indispensáveis verbos.
A partir desse ponto, os capítulos seguintes apresentarão os demais personagens que, assim como Crisóstomo, têm uma razão de ser movidas pela procura. Mas, voltando ainda um pouco mais, pensemos agora em nós, eu que escrevo, tu que me lês: o que suscita a procura? Uma falta, parece a resposta mais lógica. Uma falta que, além de existir num ocupar vazio de espaço, incomoda. Buscamos suprir a falta porque acreditamos que a presença nos fará mais felizes. Certo? Mas o que fazer com uma vida em que a falta parece ter criado raízes insuperáveis? Seriam esses os infelizes.
Os personagens de Valter Hugo são infelizes por princípio, mas a procura insiste em movê-los para algum lugar… Ali, justamente onde todos se encontram. Essa leitura me pôs a pensar no quanto a vida exige disposição. Seria mesmo muito estranho se todos os seres humanos tivessem a “sorte” de nascer no exato lugar que lhes acolha, com as exatas pessoas que lhe entendam (inclusive no não entender). É preciso disposição para buscarmos nossos semelhantes, e isso exige um olhar atento, paciente e meditado. Podem estar na rua ao lado, no trabalho, no hemisfério oposto, ou mesmo em algum ramo de nossa árvore genealógica. Uma família escolhida, composta por sujeitos que enfim se encontram como cumprimento de uma promessa do destino, me parece motivo o bastante para procurar.
Finalizo com uma possibilidade do que pode trazer essa procura. “Estavam à mesa carregados de passado, mas alguém fora capaz de tornar o presente num momento intenso que nenhum dos convidados quereria perder. Naquele instante, nenhum dos convidados quereria ser outra pessoa. O Crisóstomo pensava nisso, em como acontece a qualquer um, num certo instante, não querer trocar de lugar com rei ou rainha nenhuns de reino nenhum do planeta” (p.183). Que mais vezes queiramos ser exatamente quem somos e estar onde estamos.
Ayla Cedraz estuda Letras Vernáculas e Inglês na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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